domingo, 28 de agosto de 2011

O Caracol


O CARACOL - Que é um caracol? um caracol é/ a gente esmar/com bolsos cheios de barbante, correntes de latão/maçanetas, gramofones/etc./Um caracol é a gente ser: / por intermédio de amar o escorregadio / e dormir nas pedras  / É: / a gente conhecer o chão por intermédio de ter visto uma lesma / na parede / e acompanhá-la um dia inteiro arrastando / na pedra / seu rabinho úmido / e / mijado. / Outra de caracol: / é, dentro de casa, consumir livros cadernos e / ficar parado diante de uma coisa / até sê-la / Seria: / um homem depois de atravessado por ventos e rios turvos / pousar na areia para chorar seu vazio. / Seria ainda: / compreender o andar liso das minhocas debaixo da terra / e escutar como grilos / pelas pernas. / Pessoas que conhecem o chão com a boca como processo de se procurarem/ essas movem-se de caracóis! / Enfim, o caracol: / tem mãe de água / avô de fogo / e o passarinho nele sujará. / Arrastará uma fera para o seu quarto / usará chapéus de salto alto / e há de ser esterco às suas próprias custas!

Do livro Gramática Expositiva Do Chão;  III. páginas 13, 15 e 16 dos "29 escritos para conhecimento do chão através de S.Francisco de Assis"

Foto: Marcelo Toledo

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Verdade e A Árvore

A Verdade
 (C.Drummond de Andrade)

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil da meia verdade
e sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil
e os meios perfis não coincidiam.

arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

A Verdade
(Shakti Leal)

"Escrevo de lápis porque lápis, a gente pode apagar e escrever de novo.
Quero me apagar inteirinha e me escrever de novo.
E se pudesse fazer isso não escolheria nada para ser e, sendo assim, observaria o que eu seria.

Se a verdade não exisate posso ser qualquer coisa que acredite e então criar a minha verdade.
A verdade dentro de mim. Aquela, lá no fundo. Tão fundo que não consigo alcançar e,
acabo morrendo antes de chegar.

Vivo na mentira de viver verdades.
E tudo assim, parece ser natural.
As coisas são assim. Tudo está em ordem.
Todos vivemos assim, criando nossas verdades.
Impondo nossas verdades como se elas pudessem ser mais verdadeiras e apagassem as verdades dos outros.
Não sabemos fazer diferente.
Presos à liberdade que essa tal encontrada verdade nos trás.

Mesmo escrevendo à lápis, não poderei fazer diferente.
Presa à liberdade que essa minha tal verdade me trás.


Foto de Marcelo Toledo.
Tudo isso me lembra o filme do Malik, "A Árvore da Vida".

Homenagem a essas verdades que, na verdade, são dúvidas. O encantador mistério da vida.

Será que verdade vem do verde?

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

apreciar: verbo transitivo; dar apreço a; avaliar, considerar


 tenho tanto sentimento
que é frequente persuardir-me
de que sou sentimental,
mas reconheço, ao medir-me,
que tudo isso é pensamento,
que não senti afinal.

temos, todos que vivemos
uma vida que é vivida
e outra vida que é pensada
e a única vida que temos
é essa que é dividida
entre a verdadeira e a errada.

qual porém é a verdadeira
e qual a errada, ninguém
nos saberá explicar;
e vivemos de maneira
que a vida
que a gente
 tem
é a vida que tem que pensar.

Fernando Pessoa